O resto é crise

Quando comecei a estudar sobre storytelling para ilustrar minhas aulas, aprendi com Jerry Brotton, em seu extraordinário livro “Uma história do mundo em doze mapas” que “uma história é um relato coerente e seletivo de um processo de transformações com ênfase nas relações causais entre situações e eventos”.

Eu sei… parece que estraguei um conceito divertido com essa terminologia chata. Mas é que as histórias são tão importantes para o modo como nos comunicamos que vale a pena tentar entender como elas funcionam. Estes são os elementos indispensáveis de qualquer história:

Um processo de mudança
Se nada muda, não há história. Se o protagonista termina exatamente como começou, não há história. Michael Corleone passa de honesto soldado ao mais cruel chefe da máfia em “O poderoso chefão”. Dorothy consegue voltar para casa, mas é uma outra pessoa depois de Oz em “O mágico de Oz”. O “Coringa” muda da meiguice inicial para um homem cada vez mais duro, decidido e violento. Os processos que culminaram na crise financeira de 2008 nos levaram de um período de equilíbrio econômico global e bancos oferecendo balanços patrimoniais conservadores para uma época de crescente desequilíbrio e balanços incertos e arriscados. Por outro lado, se fôssemos falar de bancos tomando os mesmos depósitos e fazendo os mesmos empréstimos anos após ano, não seria uma história.

Relações causais
Causa e efeito são o cerne de qualquer narrativa. Porque Tintim encontra um pergaminho escondido em um modelo de navio, ele embarca em uma caça ao tesouro no Caribe. Porque os troianos decidem trazer um cavalo de madeira gigante para dentro de suas muralhas, os gregos conseguem invadir a cidade, na “Ilíada”. Porque as taxas de juros estavam tão baixas, os investidores assumiram riscos maiores na busca por rendimentos. Esse é o fator que torna uma narrativa lógica e, portanto, confiável para o público: o narrador deixa claro por que as coisas acontecem.

Gatilho
Misture causa e mudança e você gera o que os roteiristas denominam de “incidente instigante”: a razão pela qual um processo de mudança começa. John Kay e Mervyn King chamam isso de “momento crucial” em seu livro “Radical uncertainty: decision-making for an unknowable future”. Toda história precisa desse primeiro gatilho que coloca em movimento os acontecimentos. Drácula contrata um escritório de advocacia para supervisionar a compra de uma propriedade inglesa. O amigo do Sr. Darcy aluga uma casa perto de Elizabeth Bannet em “Orgulho e preconceito”. A princesa Leia obtém os planos da Estrela da Morte e os esconde em R2-D2 em “Star Wars”. É claro que há fatos anteriores (como em um filme mais recente da série “Star Wars” que ilustra justamente o roubo desses planos), mas estamos falando do ponto que marca o início da história propriamente dita. O gatilho é a causa original no relato de múltiplas causas e efeitos.

Há muitos outros elementos que contribuem para uma boa história – um herói, um vilão, um mentor, políticos trapaceiros, aliados, um amor perdido, contratempos e obstáculos, reviravoltas e revelações dramáticas -, mas esses três itens mencionados são os fundamentais. Como exemplo, veja quais são eles em “Hamlet”, de Shakespeare.
O gatilho: a aparição do fantasma do pai de Hamlet, revelando que foi assassinado pelo tio de Hamlet, Cláudio, agora em posse do trono e da rainha.
Relações causais: porque tem dúvidas sobre a afirmação do fantasma, Hamlet elabora um teste para verificar se Cláudio é realmente culpado; porque o pai de Ofélia é morto pelo homem que ela ama, ela enlouquece e se afoga; porque teme Hamlet, Cláudio trama sua morte; porque Ofélia morreu, seu irmão busca vingança.
Processo de mudança: Hamlet descobre a verdade sobre a morte do pai; Ofélia enlouquece; a maioria dos personagens principais é morta; o trono dinamarquês passa para o príncipe herdeiro norueguês.

Processo de mudança, relações causais e gatilho: o relato de Mervyn King em “The end of alchemy: Money, banking, and the future of the global economy” sobre as origens da crise financeira de 2008 inclui todos os três.

Mas por que uma história? O que há nessa antiga tradição e estrutura cognitiva que leva, aqui no Brasil, o próprio Presidente da República a escolhê-la para comunicar um assunto tão complexo, em meio a panelaços contra e gritos de apoio fervorosos, correndo o risco de ver tudo que diz distorcido desavergonhadamente pela #Globolixo?

A resposta está nas relações causais. Os seres humanos anseiam por explicação. Se algo importante acontece, queremos entender o porquê. As narrativas mostram como uma coisa leva a outra, e, com isso, elas nos ajudam a entender nossa realidade caótica. Muitas coisas aconteceram durante a crise financeira da “marolinha” de 2008, muitas delas assustadoras, destrutivas e confusas. A história de King desenha um fio coerente e compreensível de lógica através do redemoinho de acontecimentos, da mesma forma que sugerem W. Cleon Skousen em “O comunista exposto: Desvendando o comunismo e restaurando a liberdade” e Naomi Klein em “A doutrina do choque: Ascensão do capitalismo do desastre”. Os livros são obras admiráveis e bem embasadas e mostram como diferentes histórias apresentam um conjunto de fatos mais ou menos precisos, porém o tom e a mensagem não poderiam ser mais diferentes.

Conspiração neoliberal ou pragmatismo bem-intencionado? É o mesmo caso entre escolher o que fazer para cuidar da saúde das pessoas ou não deixar o país quebrar financeiramente. Na ausência da verdade definitiva, só podemos recorrer às verdades parciais que essas narrativas representam.

Nas histórias mais simples existe uma única causa para cada efeito, e cada efeito, por sua vez, passa a ser a causa do próximo. A história de Mervyn King não é assim tão simples. Ele cita múltiplas causas para múltiplos efeitos, e sua história de complexas inter-relações econômicas e políticas se estendem por várias páginas. No entanto, um leitor atento terminará a leitura como eu terminei, com a sensação de ter entendido a razão da crise. Esse é o valor real das histórias como recurso de comunicação: infundir coerência e clareza em um material complexo.

Porém, nós pagamos um preço por essa clareza e coerência. O problema das narrativas é que elas são altamente seletivas. Narrativas não fornecem uma imagem completa. São verdades parciais. Toda história tem vários lados. Em muitos casos, há uma variedade de maneiras genuinamente – talvez igualmente – legítimas de descrever uma pessoa, um evento, um objeto ou um princípio. São o que se chama de “verdades concorrentes”. Podemos ver isso com clareza nos filmes, com os cortes entre cenas que por vezes saltam por longos períodos de tempo e ângulos das câmeras que excluem parte da ação. Roteiristas, diretores e editores escolhem o que mostrar a partir de diversas opções. David Nicholls, em seu romance “Um dia: Vinte anos, duas pessoas”, pinta um retrato de duas vidas ao longo de duas décadas narrando apenas os eventos de um único dia a cada ano.

O mesmo acontece com histórias de ficção. Quando descrevemos uma sequência de eventos, fazemos escolhas: nosso ponto de partida, os momentos que relatamos, as maneiras de retratar as pessoas. E o que é crucial, simplificamos causa e efeito. As histórias são bem sistemáticas nisso: porque Paris raptou Helena de Menelau, a Grécia declara guerra a Troia; porque houve Cathy dizendo que se casar com ele seria degradante, Heartcliff sai de casa e ganha a fortuna que o tornará senhor do “Morro dos Ventos Uivantes”.

A vida real raramente acontece assim, preto no branco. Em geral, os acontecimentos têm várias causas. Pode ser que X seja uma das causas de Y, mas também o são U, V e W. Políticos e a mídia sensacionalista explicam a todo momento o surgimento da pandemia da Covid-19 com simples histórias de causa e efeito, que favorecem seus próprios interesses. Políticos rivais contam histórias alternativas, com elos causais diferentes, que, no entanto, podem ser igualmente verdadeiros. Estudiosos como Nassim Nicholas Taleb falam até mesmo de uma “falácia narrativa”: nossa capacidade de olhar para sequências de fatos sem tecer uma explicação ou, similarmente, forçar uma conexão lógica, em “A lógica do cisne negro: O impacto do altamente improvável”.

Você pode estar mais propenso a aceitar uma das histórias, dependendo de seu posicionamento em relação à preocupação do governo Bolsonaro com a economia, ao isolamento social como única alternativa ao crescimento da pandemia ou a teorias conspiratórias. Seu mindset ou sua visão de mundo podem induzi-lo a acreditar em uma das versões dos eventos, mas ambas as histórias são verdades na medida em que os fatos que apresentam são verdadeiros. Agora, como esses fatos são conectados dentro de um conjunto de relações causais que se aglutinam para formar uma mensagem final… bem, isso é contar histórias.

Para simplificar, podemos conceber três tipos de contadores de histórias:

Defensores: são aqueles que selecionam verdades concorrentes formadoras de uma impressão satisfatoriamente precisa da realidade, com o intuito de alcançar um objetivo construtivo.

Desinformantes: são aqueles que propagam verdades concorrentes que distorcem a realidade inadvertidamente.

Enganadores: são aqueles que deliberadamente empregam verdades concorrentes de modo a criar uma impressão da realidade que sabem de antemão não ser verdadeira.

Na prática, geralmente há mais de uma maneira verdadeira de falar sobre algum assunto. Podemos usar verdades concorrentes de formas produtivas para engajar pessoas e inspirar ações, mas também devemos estar atentos àqueles que as usem para nos enganar.

É bom usar histórias quando queremos esclarecer por que certas coisas aconteceram ou como podem vir a acontecer. Mas é preciso ter cuidado com enganadores que insinuam uma causalidade inexistente em histórias de acontecimentos reais.

JERÔNIMO LIMA
CEO DA METTODO REFLEXÕES ESTRATÉGICAS E VICE-PRESIDENTE DA ABCO

 

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