Como viver bem em época de quarentena e isolamento social

Para meu amigo Luis Henrique, exemplo de serenidade e empatia durante o isolamento e na vida também.
 
Para minha irmã Ana Cândida Lima, que nunca me deixa sozinho.
 
Como seres humanos, reconhecemo-nos como pessoas e nos organizamos em sociedade por meio da interação social. Por isso, durante períodos de isolamento, o mal-estar psicológico pode ocorrer, fragilizando nossa capacidade de adaptação e reação ao estresse do confinamento, produzindo respostas fisiológicas e emocionais que podem impactar nosso sistema imunológico e a condição de equilíbrio mental para enfrentamento de situações adversas.
 
Por definição, quarentena é a reclusão de indivíduos ou animais sadios pelo período máximo de incubação de uma doença, contado a partir da data do último contato com um caso clínico portador, ou data em que esse indivíduo sadio abandonou o local em que se encontrava a fonte da infecção. Alguns autores, como Anjuli Tostes e Hugo Melo Filho, em “Quarentena: Reflexões sobre a pandemia e depois”, substituem o termo “reclusão” por “vigilância e observação” dos comunicantes motivados por questões éticas e menos afeitas ao poder de “polícia médica”.
 
Aprendi na Marinha que a palavra quarentena originou-se da prática medieval de manter sem comunicação, nos portos em que atracavam, durante 40 dias, os navios procedentes de determinadas regiões, sobretudo do oriente. A origem etimológica da palavra vem da língua vêneta, designando o período de 40 dias em que todos os barcos deveriam ser isolados antes que passageiros e tripulantes pudessem desembarcar durante a epidemia da peste negra nos séculos XIV e XV, sendo inspirado no trentino, período de 30 dias imposto pela primeira vez em 1377, em Veneza.
Iris Almeida Santos e Wanderson Flor Nascimento, no artigo “As medidas de quarentena humana na saúde pública: Aspectos bioéticos”, reportam que o valor de 40 dias atribuído ao nome da prática teve origem nos primórdios da vacinação antivariólica na China. Segundo suas referências, observava-se que as crostas extraídas dos acometidos por varíola permaneciam infectantes por cerca de 40 dias, e essa observação difundiu-se como prática médica e cultural com objetivo de purificação ou contenção da propagação de doenças. A quarentena difere do isolamento por esse segregar um doente do convívio das outras pessoas durante o período de transmissibilidade, a fim de evitar que outros indivíduos também sejam infectados. Vale a apena destacar que, conforme a legislação sanitária internacional, apenas quatro doenças são quarentenárias, na exigência de observação dos comunicantes de um paciente: varíola, febre amarela, peste e cólera.
 
A palavra também é usada em outros contextos, por extensão, para indicar que determinada pessoa, animal ou objeto deve permanecer isolado de outros de igual natureza por problemas que não apenas doenças contagiosas. Em informática, por exemplo, usa-se em diversas acepções, como mensagens de correio eletrônico suspeitas de serem spam ou arquivos que possam conter vírus eletrônico.
 
Apesar da quarentena ser considerada pelos historiadores modernos como uma das primeiras contribuições fundamentais à prática da saúde pública, Dina Czeresnia, em “Do contágio à transmissão: Ciência e cultura na gênese do conhecimento epidemiológico”, assinala que no momento de sua instituição, em épocas da peste, a medida sanitária não tinha sua devida importância reconhecida. As noções de contágio estavam associadas a uma concepção ontológica do contato com espíritos, demônios, algo que entra no corpo, como flechas lançadas pelos deuses, sendo necessário o isolamento e expulsão, e associada à noção de miasmas e perturbação do equilíbrio e da harmonia física. A propagação da epidemia foi descrita, na época da peste, como semelhante a um incêndio: a doença é transferida de um doente a outro assim como o fogo se espalha. Nos casos de lepra, uma doença que esteve fundamentalmente associada à noção de contágio/contato, a doença era relacionada à impureza espiritual e os doentes eram expulsos da comunidade, destituídos de direitos civis e considerados socialmente mortos. Foi o que aconteceu com Naomi e Tirzah, respectivamente mãe e irmã de Ben-Hur, como mostrado no filme de 2016 dirigido por Timur Bekmambetov.
 
Trazendo o assunto para a nossa atual realidade, o fato é que sem poder sair de casa para cumprir atividades rotineiras como levar os filhos à escola, trabalhar, fazer compras, ir a restaurantes e cinemas, fazer exercícios ao ar livre e visitar amigos e familiares, temos passado por uma experiência sem precedentes. Há mais de dois meses, desde que os governadores decidiram decretar quarentena como forma de combater a pandemia do novo coronavírus, o isolamento social tornou-se uma realidade em todo o país.
 
Com exceção dos profissionais da saúde e os que atuam em áreas consideradas essenciais, a maioria de nós teve sua rotina interrompida e passou a ficar em casa, à espera de que a situação melhore. A medida, que já preocupa por conta dos reflexos ainda incalculáveis, mas já sentidos na economia, também deve atuar diretamente na saúde das pessoas.
 
Segundo Rosana Rios em “Depois da quarentena: Antologia futura de um presente confinado”, ficar recluso pode afetar não só o emocional, mas também a saúde física, pois o contato social interfere na liberação de neurotransmissores como endorfina, dopamina, serotonina e ocitocina, responsáveis pela sensação de bem-estar, amor e empatia.
 
Assim, o isolamento pode provocar certo embotamento psicológico, frieza e distanciamento das emoções positivas. Na prática, isso significa que, no começo, com a redução da entrada de informações externas, as pessoas podem aumentar seu poder de concentração em experiências subjetivas e sensações. Porém, com o passar do tempo, o quadro muda, podendo provocar ansiedade por pensamentos recorrentes e a sensação de distorção da noção do tempo e da realidade.
A adaptação pode ser difícil por sermos seres sociais e até mesmo dependentes das relações com os outros. Por isso é comum ocorrer estranhamento e sensação de desamparo, abandono, incerteza, solidão, depressão, ansiedade, paranoia, sentimento de baixa autoestima e até psicose.
Se até mesmo quem tem um quadro mental saudável pode ser afetado negativamente pela quarentena, pessoas com histórico de depressão e ansiedade devem redobrar os cuidados nesse período, já que os problemas poderão ser agravados com a falta de interação social. Nesses casos, a recomendação é não interromper a medicação que fazem uso e buscar ajuda, se for necessário. É possível recorrer à psicoterapia a distância, conversar com pessoas queridas pelo telefone para diminuir o distanciamento social e também evitar o contato com notícias negativamente sensacionalistas, que infelizmente é o que mais se vê na mídia da tragédia.
Não é só o emocional que é afetado diante do privamento social. Dores de cabeça, de estômago e nas costas, insônia, fadiga e náuseas podem aparecer como sintomas da quarentena. Inicialmente, o poder de concentração nas próprias experiências subjetivas aumenta, e somado ao momento de tensão e preocupação com a saúde, com a vida e com a morte, é natural que respostas psicossomáticas desagradáveis aconteçam.
Há um mecanismo, nesse caso, que ocorre em três fases: alerta, resistência e exaustão. No início, na fase de alerta, temos à disposição recursos para enfrentar a situação. A principal substância relacionada a esse momento é a adrenalina. Podemos lutar ou fugir. No entanto, se a ameaça persiste, entramos na fase de resistência, caracterizada por alterações no ritmo do sono, sintomas digestivos ruins, tonturas, dificuldades sexuais, tédio, irritabilidade, vontade de fugir e dores de localizações variadas. Por estarmos vivendo um momento de imprevistos e, para muitos, assustador, qualquer tensão emocional pode tornar-se mais intensificada e acabar sendo representada por sintomas físicos. A conexão com outras pessoas, ainda que de forma digital, é uma saída para atenuar o estresse e, consequentemente, os problemas físicos. Vejamos o exemplo dos idosos que não sabem lidar com redes sociais. Eles poderão ter sintomas e doenças mais precocemente porque o sentimento de solidão será muito intenso. Sendo assim, são grandes as chances de termos mais sintomas e doenças não relacionadas à Covid-19 pelo fato dos recursos da fase de resistência irem diminuindo até se entrar na fase de exaustão, em que as doenças se manifestam de forma mais intensa dependendo das características físicas herdadas e adquiridas ao longo da vida, chamando a atenção para as consequências que o isolamento poderá ter à saúde das pessoas e também à saúde pública.
Por mais clichê que possa parecer, tentar ver o lado positivo ou ao menos evitar pensamentos ruins nesse momento são práticas fundamentais para enfrentar o isolamento de maneira saudável. Lembrar que o isolamento social não é para sempre, manter o pensamento positivo, mas de forma racional, tentando tirar o máximo de proveito dessa situação é muito útil.
Estou em casa desde o dia 12/03. Só saí no início de uma manhã para tomar vacina contra a gripe, mas nem cheguei a descer do Uber, pois apenas precisei colocar o braço para fora do carro para que o atendente me vacinasse e eu pudesse voltar logo para casa.
Não tenho problemas para ficar em casa; na verdade, eu gosto. Nos últimos anos, eu praticamente só saio para trabalhar. Adotei uma visão de mundo mais simples e modesta desde que adotei a filosofia da simplicidade voluntária como forma de viver minha vida. Então, nesse período, eu ouço música, leio, escrevo ensaios, cozinho, jogo futebol de botão, faço faxinas, levo o lixo subindo e descendo as escadas (eu moro no quarto andar), cuido do filho e do gato, trabalho em home office (assim conheci várias outras plataformas além do Skype, que era a única que usava), aprendo em cursos grátis na internet, faço videochamadas com meus pais e amigos mais próximos.
O isolamento social imposto pela pandemia trouxe consequências emocionais paradoxais: dificuldades de convivência entre os que estão confinados em família, em que as diferenças se desvelam e incomodam, e, por outro lado, risco de intenso sentimento de solidão entre os que estão sós. A diferença entre solidão e isolamento se aproxima. Solidão é um afeto involuntário de profundo vazio e desamparo que implica sensação de despertencimento, de ausência de identificação. Pode estar presente mesmo se estando acompanhado, em locais movimentados, e provoca angústia. O isolamento implica ausência de companhia e pode ser voluntário ou imposto. O isolamento social que vivemos nas circunstâncias atuais é imposto, mesmo com a consciência de que ele significa valorizar a vida, a saúde e o respeito aos outros.
Pesquisei diversas fontes de orientações para que possamos enfrentar tudo isso. Eu recomendo a leitura de “O manual da quarentena: Para uma quarentena sem neura”, de Artur do Nascimento; “Desconforto emocional em períodos de isolamento”, de Marcos Wagner e Karoline Paiva; “Produtividade home office na quarentena”, de Elton Soares; e, principalmente, “A arte da quarentena para principiantes”, de Christian Dunker. Desses livros e pela minha experiência pessoal, compilei uma lista de sugestões para que possamos passar melhor por esse momento difícil.
1) Criar uma rotina, estabelecer horários e escolher fontes seguras de informação, são formas de encarar esse momento sem muitos percalços. Praticar exercícios físicos moderados, evitar excesso de comida, bebida e café, abrir as janelas para ventilar a casa e expor-se à luz solar também dão resultado. Conversar com pessoas queridas pelo telefone, de preferência com videochamadas. Reservar um momento do dia para meditar, orar (se você for religioso) e praticar exercícios de respiração também são jeitos de lidar com a quarentena.
2) Assistir noticiários apenas uma vez ao dia. Geralmente a edição da manhã consolida tudo o que precisamos saber para ficarmos atualizados. Não caia na armadilha da hiperinformação e no excesso angustiante de informações falsas ou exageradas. Isso pode levar a um estado mental de constante alerta, prejudicando o relaxamento e a capacidade de discernimento. Você tem condições de filtrar conteúdos e impor limites quanto à sua exposição a informações que alterem seu estado de humor.
3) Estar isolado não é uma punição e sim uma preservação e contribuição para o bem comum. Permanecer em casa por um tempo é necessário, mas não é uma condição definitiva. Em breve tudo voltará ao normal. Você tem condições de ressignificar o momento atual e dar a sua contribuição.
4) A solitude é um estado desejável de privacidade que permite a reflexão e a subjetivação pessoal, mas a solidão pode produzir tristeza em excesso e potencializar traços depressivos inerentes a cada pessoa. Utilize toda tecnologia disponível para manter-se conectado com a vida e com as pessoas que você gosta. Una-se aos seus familiares e amigos promovendo boas conversas por meio de videochamadas ou mensagens. Você tem condições de se fazer presente ainda que fisicamente longe de seu grupo social.
5) Quando estamos amargurados, nosso mundo interior fica embrutecido e nossas reações e comportamentos podem se revelar de forma destrutiva, ferindo aqueles que estão à nossa volta e nos impedindo de enxergar soluções. Você tem condições de pensar diferente e aliviar as dores produzidas pelo momento atual.
6) Se o ócio não for criativo, pode conduzir a um estado de letargia existencial. Encontre nas atividades que não tinha o hábito de fazer e nas atividades físicas que possam ser executadas em casa, um meio para aliviar desconfortos e para preencher o tempo. Você pode manter-se ativo e produtivo mesmo sem sair à rua. Movimentar-se alivia a tensão do isolamento.
7) Para muitas pessoas, trabalhar em regime de home office pode ser uma experiência eventualmente não prazerosa. Essa nova realidade, ainda que temporária, pode desorganizar a rotina diária e produzir algum tipo de insegurança ou angústia. Organize seu tempo, incluindo períodos para sua atividade profissional, mas respeite intervalos para almoço, pausas para o café e término de expediente. Não abra mão do tempo livre. Interaja com outras pessoas e descanse. Gerencie sua agenda considerando o momento atual, mas sem perder de vista seus propósitos de vida no longo prazo.
8) Dividimos nosso espaço de confinamento com outras pessoas do núcleo familiar. Sua individualidade é importante, mas a dimensão coletiva não pode ser ignorada. É importante que todos tomem consciência das dificuldades atuais, exercitando a empatia, firmando acordos e regras de convívio, e buscando um elevado espírito de colaboração e apoio mútuo, a fim de tornar a vida agradável durante esse período. Você pode dividir espaços, cumprir rotinas e acordos para o bem coletivo.
9) Crianças, idosos, portadores de deficiências e pacientes com baixa imunidade e doenças crônicas devem ser ouvidos e priorizados, pois têm perspectivas e necessidades peculiares. Conversar, escutar, compreender e estabelecer rotinas solidárias inclusivas é importante para que as limitações impostas pela pandemia possam ser assimiladas e seguidas. Adapte as restrições diminuindo a sensação de perda e impedimento. Você tem condições de explicitar os motivos da limitações e alterações da rotina, minimizando sentimentos negativos em relação ao contexto.
Há vários estudos epidemiológicos mostrando que isolamento voluntário e compulsório tem diferentes efeitos sobre a saúde mental. Entretanto, os mesmos estudos mostram que a percepção altruísta do isolamento, no sentido de a pessoa perceber que esse gesto protege não só ela própria, mas também o outro, traz sentido positivo, tornando essa necessidade mais leve e suportável. Possibilitando, inclusive, maior adesão a essa proposta ao coletivo. Por outro lado, a percepção desse isolamento solitário pelos que estão de fora, provocando respostas solidárias, é uma possibilidade de atenuar o sofrimento de quem está só. O altruísmo sempre caminha junto à sublimação. Afinal, o sujeito se forma no coletivo, a partir do outro. Proteger-nos é proteger o outro. É importante lembrar que o impacto psicológico da quarentena é abrangente e complexo e pode ter longo alcance, com possibilidades de manifestações tempos após ela terminar.
Ainda que a sensação de solidão possa ser decorrente daquilo que as outras pessoas não lhe oferecem ou deixaram de oferecer, muitas vezes ela pode ser fruto do próprio autoisolamento. Nesse sentido, é preciso assumir a parcela de responsabilidade para buscar restabelecer essas relações ou criar novas. Então não desanime, enfrentaremos esse tempo com consciência, inteligência e empatia!

JERÔNIMO LIMA
CEO DA METTODO REFLEXÃO ESTRATÉGICA E PRESIDENTE DA ABCO

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