O Risco da Privacidade em Tempos de Pandemia

Mas não é só debate e discussões, há também opiniões convergentes, como o impacto que esta pandemia causará, transformando o mundo que conhecemos.

A maioria de nós já ouviu falar de várias outras epidemias e pandemias. A última, há mais de 10 anos atrás, a H1N1, também conhecida por gripe suína por derivar de suínos e aves, alcançou 187 países, e matou mais de 300 mil pessoas. A mais marcante foi há mais de um século. A gripe espanhola, que apesar do nome iniciou nos Estados Unidos (1918/1919) teve mais óbitos do que a própria segunda guerra mundial, mostrando o quanto um vírus pode ser letal.

Nesse momento, a Sars-Cov-2 que origina a COVID-19, pára o mundo. Primeiro pela rápida disseminação territorial do vírus, segundo pela orientação enfática da Organização Mundial da Saúde (OMS), e de tantos outros departamentos de saúde mundo afora, que focam no isolamento social como a melhor ação para conter o contágio do vírus, reduzindo o número de casos ao ponto em que os sistemas de saúde dos países, consigam tratar os pacientes que precisam de tratamento intensivo. É o que ficou conhecido como “achatamento da curva” de contágio.

Mas gostaria de voltar há uns três meses, onde esta questão da pandemia não parecia nada mais do que algo mais contido na Ásia, em especial na China, onde ela apareceu. Não nos preocupávamos com essa situação, pois, de certa forma, a China pode nos passar algumas impressões: assim como existe muita gente (população) para facilitar a transmissão local, também existe muita gente para tratar os pacientes. Recursos financeiros também deixaram de ser um problema para a China, há anos. Junto com os EUA, é um dos motores da economia mundial. A China também possui em abundância cientistas e capital intelectual suficiente para poder dar conta de problemas sanitários emergentes, mesmo sabendo também que essa é uma das suas principais dificuldades e que deixa a comunidade de prevenção mundial sanitária e a OMS, em estado de alerta. No nosso mundo econômico atual, quando pensamos em organizações que tem capital humano, tecnologia e capacidade de investimento abundantes, temos uma sensação de que esta organização tem um poder de enfrentamento para qualquer tipo de problema, seja uma crise financeira ou de outra natureza. Mas entendemos que esse tipo de crise não escolhe ninguém, afeta a todos. Devemos dar crédito também a disciplina do povo chinês. Poderíamos discutir a origem dessa disciplina, se ela foi forjada da necessidade de gerenciar uma superpopulação, derivada do sistema político e uma voz de comando muito clara e central, ou de como o povo foi liderado no último século, da enorme concorrência de mercado gerando um esforço maior por parte do povo chinês, do papel vigilante do Estado, mais ainda nos dias atuais, e que mantém o cidadão na linha, enfim, essas e outras situações poderiam justificar essa disciplina. O fato é que quando o governo chinês realizou uma quarentena em Hubei, na cidade de Wuhan, e, posteriormente, em outras cidades da região em 23 de janeiro de 2020, colocando em quarentena além de 11 milhões de Wuhan, mais 57 milhões de outras quinze cidades de Hubei, houve, em dois meses de quarentena, um controle da pandemia na região, quase não havendo mais nenhum caso de transmissão local. Podemos dar uma boa parte do crédito aqui para a disciplina do povo local, em seguir as recomendações impostas de isolamento e garantindo assim, esse resultado.

De qualquer forma, o coronavírus não ficou apenas na região de Hubei. Ele se tornou uma pandemia global, surpreendendo a maioria dos países que não se preocupavam com o fato. Muitos alertas sobre a vulnerabilidade do sistema de prevenção de vírus, previam os riscos de uma pandemia. Em 2015, Bill Gates, em um TED, colocou de forma clara que a principal ameaça da civilização, não era mais uma guerra nuclear, falando das ações que foram adotadas nos últimos anos, para “desarmar” e diminuir a probabilidade para esse fato. O grande risco estava na propagação de um vírus em escala global.

Voltando há 3 meses: Além de não estarmos tão preocupados, e muito menos preparados para esta futura pandemia, o mundo caminhava, com a evolução de seus assuntos, com as costumeiras brigas políticas e comerciais internacionais, com evoluções no campo da ciência e novas organizações surgindo e modificando mercados, estávamos nos preparando para Olimpíadas em 2020 e consumindo campeonatos de futebol, como sempre fazemos. Aqui no Brasil estávamos passando por discussões políticas e reformas no campo tributário, e mirando eleições municipais no segundo semestre do ano. Um outro assunto que estava ganhando envergadura em 2020, sendo pautado principalmente no ambiente de trabalho de nossas organizações, muito em função da aproximação da data de entrada em vigor, era a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados que, até então, estava programada para entrar em vigor, em agosto de 2020.

Estava. O que vemos agora é ela sendo jogada para 2021, dentro da portaria 139, de 03 de abril de 2020, fazendo parte de outras importantes regulamentações que legislam sobre temas decorrentes da pandemia do coronavírus. Ela ainda tem que passar pela Câmara dos deputados e depois para a sanção presidencial. Já passou pelo Senado onde foi costurado um meio termo, entre o vacatio legis, sendo estendido para janeiro de 2021, o período que a lei passa a entrar em vigor, e suas sanções passariam a valer apenas a partir de agosto de 2021. Sem dúvida, é uma proposta que, se aprovada, geraria insegurança jurídica para toda a sociedade, principalmente se a ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados for também postergada para 2021.

De uma maneira geral, nos últimos anos, as organizações calcaram boa parte de suas estratégias, principalmente as de marketing, em conhecer mais a fundo seus consumidores. Sem que houvesse uma lei que regulamentasse o assunto, acabou-se cometendo muitos excessos na aquisição e no tratamento de dados pessoais. Muitos desses dados foram, e ainda são, coletados sem que se tenha nenhum tipo de consentimento de seus titulares. Em diversos lugares do mundo, onde o “epicentro” da privacidade de dados foi a Europa, brotaram leis de privacidade de dados pessoais, no intuito de garantir direitos como privacidade e intimidade, alguns deles oriundos da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948 que foi elaborada após a segunda guerra mundial, e tinha como objetivo normalizar o assunto “direitos humanos”.

A nossa LGPD é embasada na lei de privacidade da União Europeia (GDPR), em vigor desde 2018.

Do contrário do que foi a época da gripe espanhola, onde não podíamos nem garantir a exatidão dos números, o mundo em que vivemos hoje, possui uma quantidade muito grande de informação e capacidade de coleta de dados, garantindo uma inteligência adicional para as organizações, a partir da análise de dados. 

Se afirmamos que o mundo não será igual como era antes, como muitos afirmam, depois que passar a Pandemia, o que poderá então acontecer??

É difícil fazer uma previsão mais detalhada sobre isso. De qualquer forma, vemos muitos líderes globais, trocando de opinião da noite pra o dia, perdidos em ter que conciliar interesses humanos e econômicos. É fato que, como humanidade, não estávamos preparados para algo dessa envergadura. A que ponto a pandemia irá ceder no mundo, e como estarão os países no que tange as suas leis e regulações? O quê era obrigatório e passou a ser flexível, e o que estava acomodado e passou a ser obrigatório? O que podemos observar é que não vai haver uma receita única, vai depender do nível da pandemia em cada país, o tempo de duração da quarentena e talvez, a necessidade em tomar medidas de controle maior para conter e vigiar a população, principalmente se ela se tornar uma doença cíclica, e o coronavírus é um vírus que sofre mutações. Outra possibilidade é se houver algum tipo de caos social, como Hollywood previu no filme “O Contágio”. Existe também o oportunismo. Conhecemos a frase que “a crise gera oportunidades”. Se, no primeiro momento, pensamos em um viés econômico, podemos ainda ampliar nossa visão. Esse oportunismo pode ser muito bem aproveitado de maneira política e na manutenção de poder.

O que muitos denominam de estarmos em uma guerra ao enfrentamento do coronavírus, poderá representar ações “de guerra”, efetivamente, principalmente com a justificativa de manutenção de ordem social.

O que precisamos cuidar e ficarmos vigilantes é se esse algo maior tem realmente justificativa e se vai ser realmente temporário. Na Europa, diversos países estão acusando a Hungria de autoritarismo temporário, pois em nome da pandemia, conquistou poder para legislar por decreto e por tempo indeterminado, provocando diversas reações de países do bloco europeu, principalmente.

Nos dias de hoje, junto com a disponibilidade tecnológica, pode-se realizar uma vigilância maior para o cidadão, bem como a invasão de sua privacidade. A China já faz isso há um certo tempo. Outras países já estudam o tema. Já tem startup que tem projeto para avaliar, via GPS do celular, se determinadas pessoas estão realmente ficando em casa no período de quarentena. Muitas cidades possuem câmeras de reconhecimento facial espalhadas. Celulares podem agora fazer registro de proximidades com outros celulares, para poder se rastrear, diante de uma pessoa que foi positivada com Coronavírus que pessoas estiveram próximas a ela. O quê se discute com veemência em muitos países, pode ser agora autorizado, em nome de algo maior, em nome de um estado de calamidade pública. Assim sendo, a pandemia pode, para muitos governantes, justificar determinados atos.

Em um mundo de fake news e desinformação sendo usada de forma estratégica, distorções da realidade a partir do uso de tecnologias digitais, dominar um povo, ou direciona-lo, a partir de uma realidade modificada, já não é mais ficção, é realidade. O caso da empresa Cambrige Analytica acessando dados não autorizados do Facebook e a realização de marketing direcionado, influenciando, por exemplo, a eleição norte americana, nos faz recordar esse fato recente e entender os riscos que estamos passando.

Associações empresarias e sociedade civil de um modo geral, precisam estar atentas a possíveis ações sem justificativas do poder público e zelar para que possamos encontrar as melhores soluções possíveis para o combate a esta epidemia, e retomar nossa sociedade sem colocar em riscos os direitos das pessoas e a sua privacidade, além de garantir um ambiente saudável para as organizações poderem se desenvolver de forma legal.

ROBERTO MAZZILLI
CONSULTOR EM TRANSFORMAÇÃO DIGITAL E CONSELHEIRO FISCAL DA ABCO
 

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