A Pirâmide Brasil


A Pirâmide Brasil

Em que andar da pirâmide Brasil foi esquecida a ética?

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Há muito ela não permeia as atitudes e o comportamento dos moradores, inquilinos ou proprietários, muito menos dos andares superiores, de onde se esperaria exemplos edificantes, capazes de nortear os inferiores (dos andares, bem entendido).
 
Sem esperança e capacidade de discernimento, todos foram inebriados pelo canto da sereia da cisterna, capaz de ensurdecer ouvidos moucos. Ninguém interpreta seu papel por não acreditar na personagem. Aos síndicos falta ação e sobra blá-blá-blá. Do primeiro ao último pavimento, dos barracos às mansões, parece perdida a capacidade de indignação.
 
Nas reuniões de condomínio, falam os de cima, sempre preocupados com os aspectos financeiros, sem pensar em melhorias estruturais. Assim, os moradores deixam de intervir na transformação da pirâmide Brasil, apesar das rachaduras, sinais evidentes de que são necessárias reformas na saúde, na educação, no campo, na previdência.
 
Socializam-se os prejuízos, mesmo a quem tem só a vida, pois nunca teve a bolsa
 
Os moradores talvez tenham consciência dessa evidência e de seus desdobramentos. Mas falta a eles capacidade de reação. Afinal, imaginam, de que adianta brigar? Agora, por exemplo, estão com as mentes ocupadas pelo canto envolvente da globalização, vendida como sinônimo de modernidade, ou melhor, de desenvolvimento.
 
No entanto, já perceberam que o emprego se reduz, e o trabalho escasseia, pois as oportunidades irão se tornar cada vez mais privilégio de alguns andares de cima, preferencialmente se não pressionarmos em prol dos investimentos na educação.
 
No caminho futuro, a ética fica à margem do elevador construído ontem com o dinheiro de todos, mas hoje explorado por uns, elitizando o direito de ir e vir e, o pior, cobrando pedágio de acesso aos andares superiores – a escada é a saída dos excluídos.
 
Aqui, cabe destacar uma curiosidade, ainda de que forma ligeira: os síndicos, bem como os moradores dos andares superiores, desmerecem os bens públicos (serviços e empresas) administrados por eles e edificados com os recursos da sociedade, para justificar a privatização, sob o argumento de que a iniciativa privada sabe gerir melhor – é atestar a própria incompetência, cabe lembrar que não podemos analisar o desempenho sem atentarmos como foram gerenciadas, observarmos sistemas de cotas, distribuição e fretes entregues a partidos políticos.
 
E sob o enfoque que ainda mais particular do desempenho, considerado do ponto de vista da ética do trabalho, até que ponto os síndicos e os moradores privilegiados dos andares mais altos, no exercício de seu mister profissional, têm levado a sério o necessário esclarecimento da missão de suas empresas de modo a melhor orientar – e não desperdiçar – os esforços de seus empregados?
 
A propalada prática do planejamento, nos vários níveis da organização do trabalho, tem sido exercida de modo a assegurar a eficácia e, em última análise, o desenvolvimento da economia empresarial como, por agregação necessária, do crescimento do produto nacional?
 
E, na sua dimensão mais básica, onde tem sido, efetivamente, estimulado o trabalho em equipe como integração efetiva das contribuições individuais para o interesse comum? Estes também são aspectos éticos, pois a moralidade administrativa não reside unicamente no combate aos desvios de conduta, mas na administração voltada convictamente para a qualidade de vida no trabalho.
 
Para reverter o processo, será preciso mobilizar os moradores. Conscientizá-los de que o empenho e a determinação de cada um leva ao todo. Mostrar, sem partidarismo ou rótulos ideológicos, que o interesse coletivo deve estar acima do individual. Evidenciar que direitos e deveres precisam ser repartidos. Provar, através de explicação simples, que a conta é rateada e poucos comem. Afinal, todos são contribuintes, direta ou indiretamente, das receitas federal, estadual e municipal. A rua asfaltada, o leito hospitalar, a vaga na escola existem graças ao trabalho de cada um.
 
Quem paga merece receber a sua parte. Não se trata de pedir favores, mas exigir direitos assegurados por Lei. Se seu filho fica sem estudar ou sua mãe deixa de ser atendida pelo médico do serviço público, cobre de quem tem a responsabilidade de dar a você aquilo que você tem direito.
 
Aqui está uma causa nobre e próxima à realidade de todos, capaz de entusiasmar e mexer com o que ainda resta de brio na sociedade e sentimento de cidadania e que não se esgota na fiscalização da res publica. Os gestores de empresas privadas, das instituições, das entidades, e os prestadores de serviços da mesma forma devem ser vigiados pelos consumidores, acionistas, associados e clientes. Não prestam esclarecimentos aos Tribunais de Contas, mas vão prestar a nós. A moda deve ser aclarar, tornar transparente.
 
Agora mesmo, os síndicos e seus auxiliares estão impondo sacrifícios aos moradores, preferencialmente aos dos andares intermediários, mas com reflexos acentuados nos inferiores, para equilibrar as finanças piramidais, por conta de erros administrativos e imposição de vizinhos externos próximos e distantes, que financiam, por conta do capital especulativo, o sonho de fazer o real virar dólar.
 
Mais uma vez socializam-se os prejuízos. O discurso fundamenta-se indiretamente na necessidade de atender às necessidades da Nação e, assim, justifica-se o sacrifício de todos – mesmo daqueles que têm somente a vida, pois já perderam, ou nunca tiveram, a bolsa.
 
A razão do problema deve-se a ausência de Ética, até mesmo nas coisas mais simples que permeiam o cotidiano. É comum, por exemplo, as pessoas jogarem lixo na rua sob a alegação de que “todo mundo faz isso”. Até mesmo profissionais liberais perguntam, antes de apresentar a conta, “com recibo ou sem recibo”.
Também os “gatos”, que agora proliferam em todos os andares da pirâmide, quando se imaginava que eram produtos dos barracos – hoje habitam fábricas, lojas comerciais, condomínios de luxo e mansões de famílias tidas como ilustres e ricas.
 
Mas a falta de Ética se faz muito mais visível na política, para atender interesses discutíveis e manter o status quo. Diante do comportamento exibido pelos de cima, como exigir dos moradores dos andares inferiores um comportamento ético? E num condomínio onde existem leis que não pegam, parece que a “Lei de Gérson” se impôs – por fim, todos querem levar vantagem em tudo.
 
As empresas, através dos seus dirigentes que residem dos andares intermediários para cima, atuam como sustentáculo econômico dessa nova pirâmide social globalizada. Têm, para com elas mesmas e a sociedade, compromissos que não se limitam à geração de bens ou serviços. Mas sim uma obrigação ética exercida pela excelência dos produtos e serviços ofertados aos consumidores; pela participação comunitária, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida nas áreas onde atuam; pela preservação do meio ambiente, com utilização racional dos recursos naturais, que implica solidariedade e compromissos com as gerações futuras, pois quanto maior for o desperdício hoje, menos recursos estarão disponíveis amanhã; e pelas relações de trabalho, valorizando profissionalmente os funcionários. (Nada de mais ou menos, de fazer por fazer, mas sim de procurar o melhor). Porque o comportamento individual somado faz o coletivo.
 
O desafio instigante e imperdível é provocar exemplos/modelos de atitudes éticas de quem detém o poder nas esferas privada e pública. Estimulando a sociedade a se indignar, se revoltar, se nausear, ficar com raiva diante de um comportamento antiético, que pode incluir, entre outros, abuso de poder, desperdício, nepotismo, nupcialismo, clientelismo, varrer a calçada com jato d’água, “o paletó na cadeira”, casar as filhas apenas no religioso, negócios ilícitos (que matam mais gente, destroem nossos valores, mancham a nossa imagem, acachapam o futuro de nossos filhos, com mais intensidade que o arrastão de fim de semana, que caco de vidro na mão de um pequeno marginal faminto e doente), aposentadorias irregulares e, para não esticar a lista, propaganda enganosa – não deixe de citar os bombeiros do seu salvamento quando for vender um plano de saúde.
 
A tarefa pode parecer inglória, mas não é. Será possível sensibilizando, conscientizando, mobilizando e contagiando à Nação na busca de um comprometimento ético. Convidando os formadores de opinião, as lideranças de clubes de serviços (o Rotary, por exemplo, tem 2.200 clubes no Brasil que congregam aproximadamente 60 mil associados), de associações de classes, de conselhos de profissionais, de sindicatos patronais e de trabalhadores e de grupos informais a destinarem alguns minutos do mês em palestras e encontros para jovens, aposentados, funcionários e empregados de todos os níveis, do estagiário ao presidente, associados e empresários.
 
Vamos falar diretamente em linguagem de fácil assimilação por todos sobre questões éticas, dando exemplos, apontando modelos. Nada de ficar em cima do muro ou adotar uma postura conformista, responsabilizando o povo ao qual pertence pelos desmandos dos poderosos. É bom lembrar que, apesar de tão criticado pelas elites, a grande maioria deste povo consegue sobreviver com baixa renda. E é ele quem constrói o Brasil a cada dia e sustenta com sangue, suor e trabalho os que estão no topo da pirâmide sem respeitar compromissos éticos, ou de campanha.

 

 

LUIZ AFFONSO ROMANO
Consultor organizacional e de pessoas, professor do Curso Desenvolvimento de  Consultores.
Atualmente, diretor do Laboratório da Consultoria,  e presidente da ABCO Associação Brasileira de Consultores, coautor dos códigos de Ética da CBV, IBEF, ABCO, coordenador da pesquisa Perfil das Empresas de  Consultoria no Brasil ( 2011 a 2019)…
O GLOBO- Opinião 05 de março 1998.
A Pirâmide Brasil O Globo 05.03.1998

Monitor Mercantil Opinião 09 de janeiro de 2020

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