Verdades morais boas ou más?

“O que é alimento para uns, para outros é um veneno amargo”.
Lucrécio, Da Natureza das Coisas, 50 a.C.
 
Para meu amigo Ricardo Bueno, que pensa muito antes de adotar uma opinião. E que me ensinou que os filhos vêm em primeiro lugar, sempre.
 
Para meus amigos Drs. Atila Velho, Edivaldo Utiyama, Everton Cury Paulo Quadros, Heládio Feitosa, Izio Kowes, Leonardo Emilio Silva, Luiz Carlos von Bahten, Paulo Roberto Corsi, Pedro Eder Portari Filho, Ricardo Zordan, grandes médicos e profissionais da saúde.
 
 
Filósofos e políticos há muito falam sobre “verdades morais”. Pessoas comuns podem não fazer uso frequente desse termo grandiloquente, mas somos inclinados a pensar que certas visões morais têm sua verdade automaticamente comprovada:
 
Roubar é errado.
Doar para a caridade é bom.
Devemos ajudar as pessoas que estão passando por dificuldades.
 
Mas a verdade moral de uma pessoa pode ser a aberração cultural de outra. Hoje em dia, vemos isso com muito mais contundência nos diferentes valores morais mantidos de diferentes culturas. Sociedades em todo o mundo têm opiniões fortemente opostas sobre questões como eutanásia, sexo e aborto, vestimentas apropriadas às mulheres, o que podemos comer, distribuição de recursos do governo, tratamento dispensado aos criminosos, como lidar com pandemias. E as verdades morais se transformam com o tempo: nas últimas décadas, por exemplo, vimos uma enorme mudança de opinião sobre a homossexualidade e o ateísmo. O bem e o mal não estão gravados em pedra.
 
O psicólogo social Jonathan Haidt, em seu livro “A mente moralista e as origens da polarização contemporânea”, identifica seis “fundamentos” morais que diferentes grupos ou culturas enfatizam em graus variados. Os liberais, ele observa, estão mais preocupados com “justiça, cuidado e liberdade”; os conservadores contrapõem esses valores com “autoridade, lealdade e santidade”. De acordo com ele, todos nascemos com os mesmos fundamentos morais, mas as sociedades nos encorajam a desenvolvê-los em diferentes combinações. Embora existam ideias morais comuns, nós as aplicamos de maneiras marcadamente diferentes.
 
Podemos ver uma ideia moral que está sujeita a evolução ou variação cultural como uma verdade concorrente. E como outras verdades concorrentes, as verdades morais podem ser manipuladas. As pessoas em posição de orientar a direção moral de uma sociedade podem remodelar a realidade para o resto de nós lançando uma luz moral diferente sobre as coisas, eventos ou mesmo pessoas.
 
É difícil imaginar que alguém tenha considerado o canibalismo moralmente aceitável, mas isso aconteceu. É difícil imaginar que as pessoas pudessem ser condenadas à morte por homossexualidade (e, em alguns lugares, ainda podem), mas foram (e são). Nossos ancestrais teriam ficado perplexos com nosso pânico moral a respeito de drogas, e é bem possível que nossos descendentes venham a sentir o mesmo. Verdades morais distintas são encontradas em diferentes épocas e em diferentes sociedades.
 
Nesse ponto você pode estar se sentindo extenuado por meu relativismo moral. Hoje nós sabemos que a homossexualidade não é moralmente errada e nunca foi! Ou, se você mora em certas sociedades, pode estar dizendo exatamente o oposto. Em qualquer um dos casos, você poderia se opor fervorosamente à ideia de uma visão moral alternativa como sendo verdadeira. Mas esse é o problema da moralidade: quer acreditemos que seja uma adaptação psicológica, um constructo social ou uma lei universal estabelecida por Deus (se é que ele existe), o fato é que estamos vivendo em um mundo onde as pessoas têm verdades morais muito diferentes de nós, e, para elas, suas verdades morais são tão válidas quanto as nossas são para nós.
 
Pode ser difícil contemplar verdades morais alternativas até mesmo em questões há muito estabelecidas. Se você tiver um mindset definido de que as drogas são tóxicas, provavelmente não há muito o que fazer para convencê-lo do contrário. Podemos mais facilmente observar a flexibilidade potencial das verdades morais em um assunto sobre o qual ainda não temos opinião fixa.
 
A maioria das pessoas pertence a grupos – partidos políticos, empresas, entidades de classe, comunidades residenciais, organizações religiosas, colegas de WhatsApp -, e tendemos a nos adaptar às verdades morais predominantes em nossos grupos. Quando surge uma controvérsia moral, normalmente seguimos a reação do grupo majoritário. Se outros membros de nossa afiliação política tuitarem em apoio a venezuelanos que foram impedidos de entrar no país ao chegarem à fronteira, provavelmente faremos o mesmo. Se crescemos em uma comunidade que considera o aborto assassinato, provavelmente nos uniremos aos protestos pró vida. Verdades morais unificam um grupo. Aliás, a biologia evolutiva tende a ver a moralidade como um conjunto de adaptações psicológicas que evoluíram para encorajar a cooperação interna dos grupos, como sugere Sam Harris em “A paisagem moral: como a ciência pode determinar os valores humanos”. Se membros de um grupo começam a adotar verdades morais diferentes, a função cooperativa da moralidade evapora e o grupo é minado, daí a pressão pela conformidade às verdades morais grupais ser forte em todas as culturas.
 
Quando o posicionamento do nosso grupo em relação a uma questão moral é contestado, defendemos nossa posição como uma maneira de defender o grupo e justificar nossa participação, mesmo que estejamos começando a ter dúvidas sobre a questão. Podemos até passar a definir nosso grupo em oposição a outros grupos, de acordo com nossas verdades morais conflitantes. Tais distinções morais, do tipo “nós contra eles”, distanciam ainda mais as sociedades envolvidas, especialmente quando vemos outros grupos como “imorais” e, portanto, nos julgamos no direito de atacá-los.
 
Os grupos podem vir a adotar verdades morais diferentes das que prevalecem em sua sociedade. Esse deslocamento moral pode acontecer por uma deriva gradual em grupos relativamente isolados, porém em geral é arquitetado deliberadamente por líderes ou influenciadores que queiram, por algum motivo, conduzir o grupo em determinada direção moral. O Cristianismo foi construído sobre um conjunto de histórias em que Jesus convence seus seguidores a ver as coisas de maneira diferente de como a sociedade judaica via. O “olho por olho” parecia uma filosofia muito justa ante que Jesus, oferecendo a outra face, colocasse o perdão à frente da justiça. Comunicadores eficazes podem incentivar grupos inteiros a adotar novas verdades morais.
 
Em “São e salvo e livre de intervenções médicas desnecessárias”, Juan Gérvas e seus colegas afirmam que funcionário de saúde pública seguem verdades morais diferentes daquelas seguidas pela maioria dos médicos e enfermeiros. Esses funcionários têm de pensar em epidemias e outros desafios relacionados à saúde, precisam tomar decisões relativas a riscos e utilização de recursos que visem ao interesse de toda a população, enquanto os profissionais de saúde clínicos estão focados na saúde e no bem-estar individuais. Consequentemente, um funcionário de saúde pública (o Ministro da Saúde, por exemplo) pode optar por racionar medicamentos caros, suspender a distribuição de remédios, limitar liberdades pessoais e colocar em quarentena pacientes expostos a doenças infecciosas, mesmo que tais medidas causem sofrimento a alguns pacientes. Um médico-hospitalar, ao contrário, fará todo o possível para evitar causar dano ou angústia a um paciente, mesmo que isso traga algum custo ou risco para a comunidade. A resistência dos organismos aos remédios não teria se tornado um problema tão sério caso os médicos priorizassem a comunidade sobre o paciente.
 
Milhares de pessoas trabalham para a Organização Mundial da Saúde (OMS), centros de controle e prevenção de doenças e órgãos equivalentes de saúde pública em todo o mundo. Para realizar bem seu trabalho, elas precisam seguir ou adotar verdades morais que coloquem os interesses da população acima dos interesses de qualquer indivíduo. Em circunstâncias extremas – o curso do coronavírus, por exemplo -, talvez seja preciso permitir que algumas pessoas morram para proteger a maioria. Mas ninguém iria se sentir confortável com um médico de família que apoiasse essa verdade moral utilitária.
 
Uma equipe de pesquisadores da Universidade de Harvard liderada pelo psicólogo Joshua Greene fez um teste com profissionais de saúde pública sobre a postura em relação a uma série de dilemas éticos e descobriu que, em geral, eles adotam uma abordagem mais utilitária do que os médicos, ou mesmo do que o restante da população. Em seu livro “Tribos morais: A tragédia da moralidade do senso comum”, ele relata que os profissionais de saúde pública estão mais dispostos, nos cenários hipotéticos apresentados, a prejudicar ou matar umas pessoas para salvar a vida de muitas outras.
 
Mesmo dentro da comunidade de saúde pública coexistem verdades morais concorrentes. Entre as maiores ameaças à saúde pública no mundo desenvolvido estão o tabagismo e a má alimentação. Algumas autoridades acreditam ser moralmente correto impor medidas para coibir esses males, como criar impostos e negar recursos públicos a fumantes ou obesos. Outros seguem a orientação moral do filósofo liberal John Stuart Mill, que argumentou: “O único propósito que permite o uso legítimo do poder sobre um membro de uma comunidade civilizada contra sua vontade é evitar prejuízos a outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é justificativa suficiente”. Esse grupo defende que haja proibições para reduzir o fumo passivo, mas não para salvar pessoas de seus próprios hábitos. Eles não apoiariam nenhuma medida compulsória para mudar os hábitos alimentares de adultos, enquanto seus colegas mais autoritários poderiam apoiar um imposto sobre o açúcar ou a existência de um preço mínimo para bebidas alcoólicas. Outras diferenças morais existem a respeito da justiça social, questionado se políticas públicas deveriam procurar reduzir desigualdades da saúde ou simplesmente otimizar a saúde pública em geral.
 
A empatia é uma ferramenta essencial para qualquer líder que queira mudar a cultura moral de uma organização ou sociedade. Mas isso não é infalível, sempre haverá aqueles que não conseguirão ter empatia ou que genuinamente não se importam o suficiente para mudar seu comportamento, porém, mesmo uma minoria que mude de comportamento pode fazer a diferença, além de estimular a mudança das verdades morais de outros. Filmes como “Pride: O orgulho de uma nação”, “Fábrica de sonhos” e “Adivinhe quem vem para jantar” ilustram como apenas um ou dois indivíduos podem modificar preconceitos – ou verdades morais – de um grupo. É o que Nassim Nicholas Taleb chama de “minoria intransigente” em seu livro “Arriscando a própria pele: Assimetrias ocultas do cotidiano”.
 
Outra abordagem é redefinir o que é considerado admirável dentro de um grupo. Especialmente líderes empresariais e de entidades tendem a cultuar o desempenho acima de tudo. Isso pode ser manifestado em métricas simples: a dimensão de um negócio, o valor de uma ação, a relação entre risco e retorno. Mas o desempenho também pode ser definido como vitórias – vencer concorrentes ou, o que seria preocupante, autoridades reguladoras. Quando empresários admiram seus colegas que tiveram sucesso em driblar uma norma, a instituição está a caminho de problemas. Se a análise da cultura de uma empresa revelar essa tendência, seus líderes precisam trabalhar com afinco para redefinir os valores que sustentam o propósito organizacional. O desempenho precisa ser repensado em termos das qualidades éticas que a empresa deseja promover. Os funcionários precisam ser persuadidos a comemorar um grande negócio quando conquistado de maneira ética, em vez do lucro obtido ao assumir riscos imprudentes.
 
Por vezes é possível apresentar um caso direcionando-o a uma nova verdade moral. Podemos persuadir pessoas a se comportarem de maneira diferente se demonstrarmos como sua postura atual está prejudicando seus próprios interesses. Essa costuma ser a abordagem mais eficaz com pessoas analíticas que são menos suscetíveis a intervenções conduzidas por empatia. Como consultor, em empresas que passaram por um importante programa de mudança de cultura, vi dezenas de histórias que detalhavam como os funcionários que já haviam aderido às novas verdades morais estavam obtendo resultados melhores. Essas histórias acabaram convencendo os céticos analíticos a adotar novas verdades morais. Eu acredito que isso também vale para a mudança cultural que o povo de um país precisa em época de pandemia.
 
Para aqueles que não demonstrarem empatia ou não aceitarem novas definições nem argumentos racionais, há uma última técnica, com forte base na ética clássica de Aristóteles em “Ética a Nicômaco”: “A virtude moral surge como resultado do hábito… nós nos tornamos justos ao praticarmos atos de coragem”. Em outras palavras, ao praticar uma atividade, podemos nos tornar de fato aquilo que fingimos ser. Isso não acontecerá de imediato, mas se nos forçarmos a ser cooperativos ou generosos dia após dia, esse hábito acabará sendo internalizado como uma verdade moral.
 
O que isso significa para os líderes de uma organização ou a população de um país com problemas morais? Se Aristóteles estiver certo, com o tempo os incentivos para agir de maneira correta levarão os funcionários e a população a pensar de maneira correta. Promoções e bônus e saúde e bem-estar oferecidos àqueles que agem de acordo com uma verdade almejada começarão a incorporar essa verdade em toda a organização ou população, ainda que alguns inicialmente aquiesçam apenas “por obrigação”. Assim, se tudo o mais falhar, incentive as pessoas a agir como se elas realmente concordassem com a verdade moral que você quer encorajar. Virtude simulada pode vir a se transformar em virtude autêntica.
 
Cabe a nós, como sociedade, definir e aceitar nossas verdades morais, sem deixar que nos manipulem. À medida que ideias e tecnologias se desenvolvem, à medida que surgem casos complexos ou que interesses minoritários se tornem mais aparentes, as verdades morais são obrigadas a mudar e evoluir. Com uma sociedade cada vez mais conectada e uma proliferação de ferramentas de comunicação de massa à nossa disposição, cada um de nós tem uma oportunidade sem precedentes para ajudar a moldar as verdades morais segundo as quais nossa sociedade vive. Podemos sugerir novas maneiras de encarar velhos dilemas morais, ou podemos oferecer nosso apoio a movimentos dedicados a mudar verdades morais que descartamos como velhos preconceitos, podemos resistir em voz alta e firme.
 
As verdades que escolhemos propagar determinarão como as pessoas ao nosso redor vão agir. Para evitar o desperdício insensato de prisões cheias de usuários de drogas, injustiças perpetradas por políticos corruptos, desigualdade financeira causada por empresários mercenários, o colapso do sistema de saúde nacional e a quebra da economia, é fundamental que escolhamos cuidadosamente nossas verdades morais e as comuniquemos com eficácia.
 
Reconheça que a moralidade é subjetiva e que moralidades de grupo danosas podem ser modificadas. Use empatia, novas definições do que é admirável, argumentos lógicos e incentivos para incutir novas verdades morais. Mas cuidado com os enganadores que demonizem coisas ou pessoas moralmente e grupos que privilegiem uma verdade moral em detrimento da sociedade.

 

Consultor Jerônimo Lima 
CEO da Mettodo Reflexões Estratégicas e Presidente da ABCO – Associação Brasileira de Consultores

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