Como falar dos livros que não lemos?

 
Mas também é de se esperar que não há a menor possibilidade de eu acertar em tudo que sugiro! Um livro, assim como uma gravata masculina, será apreciado ou não dependendo de muitas variáveis. No caso do gosto pela gravata, depende do senso estético, tipo de evento, combinação com os trajes que se tem, às vezes até com a roupa da acompanhante da ocasião em que a gravata vai ser usada! Por exemplo, eu aprendi nos EUA, quando fiz curso para ser um palestrante e instrutor certificado no IBSTPI, que alguém que vai falar em público sempre deve usar algo vermelho na altura superior do tórax, de modo a chamar a atenção para o seu rosto. Então, quando eu falo em público, costumo usar gravatas predominantemente vermelhas. Quando vou a eventos em que não sou palestrante, para me colocar no meu devido lugar de aprendiz, uso discretas gravatas de cores que enxergo, uma vez que sou daltônico, e sempre tenho receio de sair de casa com a roupa inadequada. Podem perceber agora a dificuldade de me dar uma gravata que não seja vermelha de presente? Essa analogia se aplica também aos livros. Da mesma forma, gostar ou não de um livro depende do momento de vida, da finalidade da leitura, do assunto que se precisa saber mais no momento, das ideias que já se tem, das referências de quem já leu.
 
Na tentativa de vez esclarecer este assunto, vou contar dois segredos meus.
 
Desde 2001, todo mês, na primeira semana, eu escolho um dia sem trabalho em clientes e vou às 10h para a Livraria Cultura do shopping Bourbon Country. Quando a livraria abre, eu pego várias sacolas no caixa e vasculho a loja à procura de todos os livros que foram publicados no mês anterior, sobre todos os assuntos, exceto infantis, romances e autoajuda, que não leio. Isso dá, em média, mais de 200 livros que seleciono para “olhar”. Então eu sento no café e só saio de lá às 22h, quando a livraria fecha. Nesse período, eu leio atentamente a capa, orelha, índice, referências, algumas páginas dos capítulos. E decoro o nome do livro, autores, editora e quase todo o índice. Os que mais gosto, eu compro (eu só não compro livros que não tenham referências, daqueles que dão ideia que tudo foi elaborado somente pela cabeça do autor); os demais, deixo no balcão dos vendedores. Caso eu queira algum livro específico que não tenha fisicamente na loja, eu entro no site da Amazon no iPad e, pelo Bing, leio os mesmos conteúdos virtualmente. Esse meu hábito e minha biblioteca que já teve 17.000 livros me orientam a fazer as escolhas do que lerei. Também me baseio muito no que aprendi no clássico “Como ler livros: o guia clássico para leitura inteligente”, de Mortimer J. Adler e Charles van Doren.
 
Na década de 1990 fiz uma oficina de redação na PUCRS sobre como escrever resenhas de livros e artigos acadêmicos. Venho exercitando isso até hoje. Um dia caiu na minha mão o livro “Como falar dos livros que não lemos?”, do romancista e psicólogo francês Pierre Bayard. O que é a leitura e para que serve? Neste ensaio lúdico e provocador, o autor categoriza os livros: os que não lemos, os que folheamos, aqueles dos quais ouvimos falar, e os esquecidos. Nem se fala dos poucos que lemos e dos quais nos lembramos. O primeiro passo para o desenvolvimento saudável de um leitor, segundo ele, é descartar a vergonha. Na verdade, todos os tipos de leitura e de não leitura servem para nos ajudar a entender o mundo compilando fragmentos de informação. Como ele explica, a não leitura não é a ausência de leitura. Ela é uma ação verdadeira, que consiste em se organizar em relação à imensidão de livros, a fim de não se deixar submergir por eles. Por isso, ela merece ser defendida e até ensinada. Nesse sentido, os exemplos de leitura são ecléticos. O grande ensaísta francês Michel de Montaigne fazia anotações na última página dos livros, do contrário esquecia por completo o conteúdo. No filme “O Feitiço do Tempo”, o personagem de Bill Murray aproveita a bizarra reciclagem de um mesmo dia para realizar o sonho máximo do leitor: achar a alma gêmea bibliográfica. Uma tribo africana questiona o texto de “Hamlet”, de Shakespeare, por não acreditar em fantasmas. Esses são exemplos de que, às vezes, a estranheza rende um entendimento mais rico. Assim, o livro não é só uma ferramenta para angariar cultura ou impressionar os outros, e sim uma forma de encontrar a si mesmo. O paradoxo da leitura é que o caminho em direção a si mesmo passa pelo livro, mas deve continuar sendo uma passagem. É uma travessia de livros que o bom leitor realiza, sabendo que cada um deles é portador de uma parte dele mesmo e pode lhe abrir um caminho, se tiver a sabedoria de não parar ali.
 
Há muitos anos li o artigo de Rubem Alves intitulado “O prazer de ler: sobre leitura e burrice”, publicado no livro “Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação”. Concordo com ele que, quando nos concentramos apenas naquilo que os outros dizem ou escrevem, abrimos mão de nossa própria visão de mundo, juízo de valor e pensamento crítico mais aguçado. Claro que entendo que se alguém compartilha algo de outrem, de certa forma também está expressando uma opinião, mas isso é pouco do ponto de vista do debate, da geração de novas ideias, do compartilhamento de conhecimento e da formação de pontos de vista alternativos. Eu prefiro saber a opinião pessoal daqueles com quem convivo sobre a vida e o mundo que nos cercam.
 
Portanto, na próxima vez que tiver dúvida sobre uma sugestão minha, pague um café para mim, dê-me um abraço ao me encontrar e converse comigo a respeito. Talvez nós iremos aprender tanto um com o outro que não será nem necessário comprar os livros!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assuntos relacionados